sábado, 4 de julho de 2020

PERFIL DE UM HOMEM COMUM - POR ERALDO GALLINDO





Eu?
Fora do padrão. Totalmente.
Vida social?
Barzinho: voz e violão. Uma cerveja. Uns risos. Conversas amenas. Uns olhos de mulher. Mente vadia. Leveza.
Carnaval?
Uma boa caminhada na mata, ar puro, um rio, canto de pássaros, frutos verdes, rochas, um pôr de sol.
Sexo?
À mercê da química, da pele, dos hormônios, da hora, da lua.
Amor?
Uma estrela mágica e fugidia, um mar ignoto. Mais poesia do que realidade.
Amigos?
Habitam os livros de ficção. São íntimos.
Música?
Sons "arqueológicos": Blues, Belchior, Beatles, Caetano, Dylan, Raul, Elton, Chico, Milton... Os fora de catálogo, poetas de um mundo que não mais existe.
Autores?
Roth, Machado, Dostoievski, Kafka, Poe, Shakespeare... Todos vivos, eternos. Desenhistas da condição humana. Investigadores de emoções partidas. Intérpretes das ambiguidades do ser. Analistas das paixões cegas. Figuras insólitas. Não cabem na pós-modernidade fluida e opaca.
Pintura?
Cego, um bronco eu sou. Prefiro as aquarelas dos dias e das noites, das plantas e das águas, dos bichos e das pedras.
Minha cotação?
Fora do mercado dos afetos. Sei do meu exílio voluntário.
Estilo?
Misantropo. Turrão. Intempestivo. Oscilante.
Este sou eu. Ou melhor, as máscaras com que me apresento diante do mundo.
Que mundo habito?
Vivo em mim. Sou meus cromossomos. Não escolhi. Biologia é destino.
Mas vivo além de mim. Sou também minhas escolhas — poucas, precárias, nunca definitivas.
O que sou?
Sou o que desejo ser. O que ainda não sou. O que me falta. O que me sobra. Os verbos que me fazem ato, também as reticências.
O que penso?
Não carrego certezas, apenas perguntas, muitas, muitas... Pouca claridade. Opacidade constante. O tecido da vida nunca é claro.
Vejo por entre névoas: a mim, os outros, o mundo.
Desejo?
Como todos os humanos — tal Goethe a clamar — quero luz, mais luz... Fragmentos de luz, que seja, mas que, ao brilharem, impeçam a escuridão absoluta. Luz, alguma luz — a que cintila no coração, a que indica horizontes e guia os sonhos.
(Sim. Voltemos às coisas concretas.)
Mulheres?
Acenei para algumas, que não me acenaram de volta. Outras — talvez menos razoáveis — aceitaram dividir comigo pão, vinho, noites, estrelas, sol, brisa, histórias inventadas, mentiras gentis, verdades ácidas... Com elas tive estradas, versos coloridos, canções de falso amor, mãos entrelaçadas, olhares de riso e de afago, furtivas lágrimas, eventuais dores, partículas de alegria.
(Não. Nenhum arrependimento, remorso ou lamento. A vida sempre teve o tamanho da minha mente, do meu querer e imaginação. Sempre foi o resultado das minhas escolhas. Não tive guias, ídolos... Fui senhor de mim.)
Morte?
Epicuro responde por mim: "Enquanto cá eu estiver, a morte não estará. Quando ela estiver, não estarei."
Forma de viver?
Vivo as coisas minúsculas. Ao final de tudo, são as que permanecem, coladas à fina pele do espírito. A vida é pequena — atos e fatos microscópicos. Mais do que isso, é mentira, farsa ou comédia. Não há grandezas no homem, somente há na linguagem superlativa dos vaidosos, dos arrogantes e dos tolos. Aceito a grandiloquência dos poetas, dos místicos e dos loucos — de ninguém mais.
Onde me encontro?
Mais do que lá fora, costuro-me por dentro. Sou o que vejo e sinto, o que minto ou revelo, o que escondo ou esqueço. Sou as adições e subtrações da existência. Respiro, pulso, existo: isto me basta. Não preciso dos adjetivos. Não há conceito que resuma o fenômeno do ser ou do milagre da vida.
Pedes-me mais traços do que sou?
Estou estampado nos meus contos, crônicas e versos — que são meus rios, minhas flores místicas. Nas minhas narrativas está minh'alma — desnuda, límpida. Também estão meus disfarces, meus muitos "eus". A minha ficção corresponde à minha biografia. Sou o que invento.
Liberdade?
Mudo o enredo da minha vida a meu bel-prazer, seguindo os ventos, os desejos, as quimeras. Queres um homem mais livre?
Um conselho aos jovens?
Simplifiquem, desdramatizem, escrevam suas histórias, inventem modos singulares de viver... Cantem, dancem, joguem-se no caudaloso rio da existência. Não sejam avaros em emoções ou em imaginação. Sigam, sigam... Os pés andarilhos fazem as estradas.
O que restará?
Na linha de chegada, quase nada. Apenas as memórias das coisas essenciais. O sonho, o poema, a canção, o grito, o gesto, o riso, o ato. Somente o que fez vibrar o espírito. O resto — poeira e esquecimento.
(Fim da entrevista)
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Eraldo. Arcoverde, 03, julho, 2020.

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