Eu?
Fora do
padrão. Totalmente.
Vida
social?
Barzinho:
voz e violão. Uma cerveja. Uns risos. Conversas amenas. Uns olhos de mulher.
Mente vadia. Leveza.
Carnaval?
Uma boa
caminhada na mata, ar puro, um rio, canto de pássaros, frutos verdes, rochas,
um pôr de sol.
Sexo?
À mercê da
química, da pele, dos hormônios, da hora, da lua.
Amor?
Uma estrela
mágica e fugidia, um mar ignoto. Mais poesia do que realidade.
Amigos?
Habitam os
livros de ficção. São íntimos.
Música?
Sons
"arqueológicos": Blues, Belchior, Beatles, Caetano, Dylan, Raul,
Elton, Chico, Milton... Os fora de catálogo, poetas de um mundo que não mais
existe.
Autores?
Roth,
Machado, Dostoievski, Kafka, Poe, Shakespeare... Todos vivos, eternos.
Desenhistas da condição humana. Investigadores de emoções partidas. Intérpretes
das ambiguidades do ser. Analistas das paixões cegas. Figuras insólitas. Não
cabem na pós-modernidade fluida e opaca.
Pintura?
Cego, um
bronco eu sou. Prefiro as aquarelas dos dias e das noites, das plantas e das
águas, dos bichos e das pedras.
Minha
cotação?
Fora do
mercado dos afetos. Sei do meu exílio voluntário.
Estilo?
Misantropo.
Turrão. Intempestivo. Oscilante.
Este sou
eu. Ou melhor, as máscaras com que me apresento diante do mundo.
Que mundo
habito?
Vivo em
mim. Sou meus cromossomos. Não escolhi. Biologia é destino.
Mas vivo
além de mim. Sou também minhas escolhas — poucas, precárias, nunca definitivas.
O que sou?
Sou o que
desejo ser. O que ainda não sou. O que me falta. O que me sobra. Os verbos que
me fazem ato, também as reticências.
O que
penso?
Não carrego
certezas, apenas perguntas, muitas, muitas... Pouca claridade. Opacidade
constante. O tecido da vida nunca é claro.
Vejo por
entre névoas: a mim, os outros, o mundo.
Desejo?
Como todos
os humanos — tal Goethe a clamar — quero luz, mais luz... Fragmentos de luz,
que seja, mas que, ao brilharem, impeçam a escuridão absoluta. Luz, alguma luz
— a que cintila no coração, a que indica horizontes e guia os sonhos.
(Sim.
Voltemos às coisas concretas.)
Mulheres?
Acenei para
algumas, que não me acenaram de volta. Outras — talvez menos razoáveis —
aceitaram dividir comigo pão, vinho, noites, estrelas, sol, brisa, histórias
inventadas, mentiras gentis, verdades ácidas... Com elas tive estradas, versos
coloridos, canções de falso amor, mãos entrelaçadas, olhares de riso e de
afago, furtivas lágrimas, eventuais dores, partículas de alegria.
(Não.
Nenhum arrependimento, remorso ou lamento. A vida sempre teve o tamanho da
minha mente, do meu querer e imaginação. Sempre foi o resultado das minhas
escolhas. Não tive guias, ídolos... Fui senhor de mim.)
Morte?
Epicuro
responde por mim: "Enquanto cá eu estiver, a morte não estará. Quando ela
estiver, não estarei."
Forma de
viver?
Vivo as
coisas minúsculas. Ao final de tudo, são as que permanecem, coladas à fina pele
do espírito. A vida é pequena — atos e fatos microscópicos. Mais do que isso, é
mentira, farsa ou comédia. Não há grandezas no homem, somente há na linguagem
superlativa dos vaidosos, dos arrogantes e dos tolos. Aceito a grandiloquência
dos poetas, dos místicos e dos loucos — de ninguém mais.
Onde me
encontro?
Mais do que
lá fora, costuro-me por dentro. Sou o que vejo e sinto, o que minto ou revelo,
o que escondo ou esqueço. Sou as adições e subtrações da existência. Respiro,
pulso, existo: isto me basta. Não preciso dos adjetivos. Não há conceito que
resuma o fenômeno do ser ou do milagre da vida.
Pedes-me
mais traços do que sou?
Estou
estampado nos meus contos, crônicas e versos — que são meus rios, minhas flores
místicas. Nas minhas narrativas está minh'alma — desnuda, límpida. Também estão
meus disfarces, meus muitos "eus". A minha ficção corresponde à minha
biografia. Sou o que invento.
Liberdade?
Mudo o
enredo da minha vida a meu bel-prazer, seguindo os ventos, os desejos, as
quimeras. Queres um homem mais livre?
Um conselho
aos jovens?
Simplifiquem,
desdramatizem, escrevam suas histórias, inventem modos singulares de viver...
Cantem, dancem, joguem-se no caudaloso rio da existência. Não sejam avaros em
emoções ou em imaginação. Sigam, sigam... Os pés andarilhos fazem as estradas.
O que
restará?
Na linha de
chegada, quase nada. Apenas as memórias das coisas essenciais. O sonho, o
poema, a canção, o grito, o gesto, o riso, o ato. Somente o que fez vibrar o
espírito. O resto — poeira e esquecimento.
(Fim da
entrevista)
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Eraldo.
Arcoverde, 03, julho, 2020.
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