domingo, 31 de março de 2019

CARTA DE RUBEM BRAGA AO PREFEITO DO RIO DE JANEIRO



        
Imagens extraídas da internet
         A Propósito de minha postagem de ontem, me senti incomodado, no sentido de mostrar ao público a crônica do Escritor Rubem Braga, intitulada Carta ao Prefeito. Apesar de escrita em junho de 1951, pelo conteúdo e a realidade que aquele Estado vive, parece que a carta foi redigida exatamente hoje. Pelo que percebemos, os problemas do Estado do Rio de Janeiro são antigos, os mesmos, apenas de repetem. Daí a importância dos escritores, poetas, cantores, jornalistas, atores e artistas em geral, pois, cada um, a seu modo, mostram ao mundo os fatos reais de um povo, uma cidade ou uma nação, para que a população possa conferir as promessas cumpridas e principalmente as “descumpridas”, que infelizmente são maioria. Confiram o texto de Rubem Braga e concluam se mudou alguma coisa no Estado analisado que é o Rio de Janeiro, o que não difere da maioria dos municípios do nosso país. Só lembrando que na época o Rio de Janeiro era a capital federal do país, só mudando para Brasília no dia 21 de abril de 1960. Eis a missiva:  

                 CARTA AO PREFEITO – CRÔNICA DE RUBEM BRAGA
                         “Senhor Prefeito do Distrito Federal:

                 Eu sou um desses estranhos animais que têm por habitat o Rio de Janeiro; ouvi-me, pois, com o devido respeito. Sou um monstro de resistência e um técnico em sobrevivência – pois o carioca é, antes de tudo, um forte. Se às vezes saio do Rio por algum tempo para descansar de seus perigos e desconfortos (certa vez inventei até ser correspondente de guerra, para ter um pouco de paz) a verdade é que sempre volto. Acostumei-me, assim, a viver perigosamente. Não sou covarde como esses equilibristas estrangeiros que passeiam sobre fios entre os edifícios. Vejo-os lá em cima, longe, dos ônibus e lotações, atravessando a rua pelos ares e murmuro: eu quero ver é no chão.

             Também não sou assustado como esse senhor deputado Tenório Cavalcanti, que mora em Caxias e vive armado; moro bem no paralelo 38, entre Ipanema e Copacabana, e às vezes, nas caladas da noite, percorro desarmado várias boates desta zona e permaneço horas dentro da penumbra entre cadeiras que esvoaçam e garrafas que se partem docemente na cabeça dos fiéis em torno. E estou vivo.

             Ainda hoje tenho coragem bastante para tomar um ônibus ou mesmo um lotação e ir dentro dele até o centro da cidade. Vivo assim, dia a dia, noite a noite, isto que os historiadores do futuro, estupefatos, chamarão a Batalha do Rio de Janeiro. Já fiz mesmo várias viagens na Central. Eu sou um bravo, senhor.

             Sei também que não me resta nenhum direito terreno; respiro o ar dos escapamentos abertos e me banho até no Leblon, considerado um dos mais lindos esgotos do mundo; aspiro o perfume da curva do Mourisco e a brisa da Lagoa e – sobrevivo. E compreendo que, embora vós administreis à maneira suíça, nós continuaremos a viver à maneira carioca.

             Eu é que não me queixo; já me aconteceu escapar de morrer entro de um táxi em uma tarde de inundação e ter o consolo de, chegando em casa, encontrar a torneira perfeitamente seca.

              Prometestes, senhor, acabar em 30 dias com as inundações no Rio de Janeiro; todo o povo é testemunha desta promessa e de seu cumprimento: é que atacaste, senhor, o mal pela raiz, que são as chuvas. Parou de chover, medida excelente e digna de encômios.

           Mas não é para dizer isso que vos escrevo. É para agradecer a providência que vossa administração tomou nestas últimas quatro noites, instalando uma esplêndida lua cheia em Copacabana. Não sei se a fizestes adquirir na Suíça para nosso uso permanente, ou se é nacional. Talvez só possamos obter uma lua cheia definitiva reformando a Constituição e libertando Vargas.

             Mas a verdade é que o luar sobre as ondas me consolou o peito. E eu andava muito precisado. Obrigado, Senhor.

             Rubem Braga – Rio, junho de 1951”

Rubem Braga (1913-1990) foi um escritor e jornalista brasileiro. Tornou-se famoso como cronista de jornais e revistas de grande circulação no país. Nasceu em Cachoeiro do Itapemirim (ES) e faleceu no dia 19 de dezembro de 1990, vítima de um câncer na laringe. Suas crônicas foram reunidas e publicadas em diversos livros. Alguns deles: “O Conde e o Passarinho” 1936, “O Morro do Isolamento” (1944), “Ai de Ti Copacabana” (1960, “A Traição de Elegantes (1967). “As Boas Coisas da Vida” (1988), dentre outros.